No momento em que está prestes a terminar mais uma legislatura, qual é o Estado Geral da Nação cabo-verdiana?
Os ganhos que Cabo Verde conseguiu até hoje ultrapassam de longe as expectativas que eu tinha em 2001, quando assumi o Governo. O país está, de longe, mais competitivo, e essa é a grande conquista, pois, para ganharmos a batalha do desenvolvimento, temos de construir factores que garantam a inserção competitiva de Cabo Verde na Economia Global. Outra grande vitória reside no facto de os cabo-verdianos terem, actualmente, uma visão partilhada do seu futuro. Queremos, daqui a 10/15 anos, ter um Cabo Verde moderno e competitivo, sem pobreza e com pleno emprego. Queremos igualmente um país com qualidade de vida, protecção ambiental e com coesão social. Em resumo, preconizamos um país desenvolvido, mais igual e mais solidário. Para realizar este sonho, conseguimos já criar as bases fundamentais, visando transformar Cabo Verde num Centro Internacional de Prestação de Serviços, em domínios como o turismo, os transportes aéreos e marítimos, as finanças, a banca, as Tecnologias de Informação e Comunicação e as Indústrias culturais. Esta visão assenta igualmente no aproveitamento de tudo o que o mar nos oferece, porque tenho a certeza de que o futuro de Cabo Verde está no mar.
Na linha da realização desse desiderato, estamos a modernizar as infra-estruturas económicas e a desenvolver áreas do domínio social como a produção e o abastecimento de água e electricidade, o saneamento, a educação e a saúde. Estamos a qualificar de forma intensiva mas qualitativa os nossos recursos humanos e, neste particular, temos assistido a um extraordinário desenvolvimento do capital humano nos últimos anos, ao mesmo tempo que vamos densificando o tecido empresarial privado.
Por outro lado, temos em curso um processo de profunda reforma do Estado, que está a criar uma nova dinâmica de relacionamento entre a Administração Pública e a sociedade. De todas estas conquistas resulta que o país, hoje, é mais democrático, tem mais e melhor sociedade civil e cidadania e disponibiliza, com certeza, espaços muito mais amplos para o exercício da liberdade. Se eu puder resumir, diria que Cabo Verde é um país possível com uma economia pujante, que está a crescer e tem condições para ganhar o futuro.
Grandes desafios
Quais são as grandes metas e os grandes desafios para o futuro?
Enfrentamos alguns constrangimentos restritivos do desenvolvimento, que constituem desafios ainda a vencer. Têm a ver com o facto de sermos um país/arquipélago, e essa dispersão geográfica acaba por condicionar, em parte, o processo evolutivo de Cabo Verde, tendo em conta os elevados custos de infra-estruturação e as dificuldades de integração dos mercados nacionais.
Temos, igualmente, constrangimentos ao nível da produção de água e energia, e insuficiências nos domínios do saneamento e do ambiente. Existem outros que não podemos negligenciar, que têm a ver com áreas tão diversas como o acesso ao financiamento e os transportes marítimos inter-ilhas, que merecem respostas ao nível das elevadas expectativas que os cabo-verdianos alimentam hoje em dia. Por outro lado, a taxa de desemprego, de 13,1 por cento, é ainda elevada para as nossas ambições, e o país apresenta manchas significativas de pobreza, para cujo combate, e este é um dos nossos grandes desígnios, temos de
mobilizar todas as energias da sociedade cabo-verdiana, assim como as dos nossos parceiros de desenvolvimento, tudo isto num contexto em que a conjuntura internacional é extremamente difícil.
Ensinamentos de Cabral
Em termos de democracia, que balanço faz do percurso feito até agora?
Quando assumimos o Governo, adoptámos alguns princípios e valores fundamentais, desde logo baseados nos ensinamentos de Amílcar Cabral, que dizia que, depois de conquistada, só seria possível justificar a independência se as pessoas passassem a viver melhor e com mais dignidade. Esta questão colocou-se-me desde o início com um objectivo fulcral da acção do Governo. Outra ideia da linha do pensamento ético de Cabral que nos guiou foi a de que quem assumisse a governação teria de exercer o poder com decência, honestidade e patriotismo.
E nós fizemos um esforço extraordinariamente grande para, com profundo amor a este país, governar com toda a honestidade e decência. A terceira dimensão dos nossos compromissos morais assentou no entendimento de que teríamos de construir os consensos necessários à volta dos principais desígnios nacionais, através de um intenso diálogo político e social. Promovemo-lo em permanência e guiados por uma grande seriedade com todas as forças políticas do país, e em nenhum momento tomámos decisões essenciais para o futuro sem consultar os partidos da oposição com representação parlamentar.
Fomos sempre ao parlamento, em sede de debate de questões tanto internas como externas, discutir as nossas ideias e confrontá-las com as da oposição, e promovemos igualmente um diálogo social profundo sobre todas as matérias de interesse nacional. Fomos o primeiro Governo de Cabo Verde a assinar um acordo estratégico de legislatura com todos os parceiros sociais, estabelecendo as metas essenciais para a dignificação do trabalho e a construção de factores de competitividade das nossas empresas. Na mesma linha, estabelecemos como ideário de governação a realização do bem comum, com o compromisso de trabalhar para que os interesses públicos se sobreponham a quaisquer outros, individuais ou de grupos. Em conclusão, a nossa atitude foi sempre, e continuará a ser, a de combater qualquer veleidade de apropriação indébita do Estado por grupos que apenas têm como objectivo defender interesses que não sejam coincidentes com os da sociedade.
Nesse sentido, considero que ganhámos a batalha. Hoje, o Estado de direito democrático está mais consolidado, as eleições são livres e transparentes, eliminámos as suspeições e os problemas existentes nas bases de dados eleitorais e promovemos o advento de uma justiça mais forte e independente. Os partidos políticos também conseguiram uma afirmação mais efectiva enquanto instituições que, como diria Norberto Bobbio, têm um pé na sociedade civil e o outro no Estado, porque são eles que fazem a intermediação entre essas duas entidades. Hoje em dia, as forças políticas têm melhores condições para o exercício das suas funções políticas e das suas responsabilidades pedagógicas, e contribuem efectivamente para a formação da vontade política nacional. Todos estes ganhos autorizam-me a dizer que há, hoje, muito mais e melhor democracia em Cabo Verde, que a liberdade de expressão e de imprensa é uma realidade absoluta e que o Estado de direito está consolidado.
Revisão da constituição
Em que medida os consensos recentemente conseguidos relativamente à revisão da Constituição e do Código Eleitoral terão contribuído para essa consolidação?
A revisão da Constituição e do Código Eleitoral são exemplos da nossa abertura para o diálogo político. Pela primeira vez, após a instauração da democracia, conseguimos ter uma Constituição de todos.
Na década de 90, a maioria de então tinha toda a legitimidade para fazer a revisão, mas fê-la sem diálogo. Eu diria que a Constituição de 1992 é um texto moderno que integra valores universais que, por isso, são consensuais. É a Constituição fundadora do Estado de direito democrático em Cabo Verde, mas poderia ter sido mais consensual se integrasse as contribuições de todos os partidos políticos cabo-verdianos, o que não aconteceu, e eu diria o mesmo em relação aos Códigos Eleitorais aprovados na década de 90.
Hoje, somos regidos por uma Constituição mais consensual, que integra e articula as opções de todas as forças políticas e da sociedade cabo-verdianas, e temos também um Código Eleitoral que reflecte as ideias e visões de todos os quadrantes, e isso é importante porque os consensos sobre as regras do jogo democrático são essenciais para a governabilidade de um país e para a consolidação da democracia.
Por resolver ficaram as questões do Tribunal Constitucional e do Provedor de Justiça. Qual a solução para que o impasse seja ultrapassado?
Inauguração do Palácio da Justiça de S. Vicente |
Aqui tem de haver consensos. São instituições cujo funcionamento demanda a conjugação das contribuições de todos os partidos políticos, de modo que não foi ainda possível o entendimento necessário de dois terços dos deputados do Parlamento para a instalação do Tribunal Constitucional e do Provedor de Justiça. Mas da parte do Governo, já disponibilizámos os recursos orçamentais e as condições logísticas para o funcionamento tanto de um como de outro.
Expectativas dos cabo-verdianos
Como encara as expectativas dos cabo-verdianos em relação ao futuro do país?
À medida que vamos desenvolvendo o país essas expectativas são cada vez mais elevadas e teremos de trabalhar para fazer face a essas expectativas. Muitas vezes elas estão acima das nossas capacidades enquanto país e nação, outras vezes funcionam como elementos de tensão para levar os governos a fazerem mais e cada vez mais, para servirem melhor a sociedade cabo-verdiana e para acelerar o processo de transformação de Cabo Verde. Antes muitas comunidades apenas queriam estradas de terra batida, hoje querem estradas asfaltadas, hoje todas as comunidades querem água, saneamento, electrificação, e temos que dar resposta a essas expectativas que são legítimas. Porém, temos de as considerar no quadro da dinâmica do desenvolvimento do país, tendo em atenção os recursos disponíveis. Eu penso que se temos conseguido ir longe, mais do que as nossas expectativas iniciais enquanto governantes, isso tem a ver um pouco com a ambição do cabo-verdiano, com a sua ânsia de ter mais e mais e cada vez mais, com a ânsia do cabo-verdiano em ter um país, moderno, competitivo e com qualidade de vida. A um tempo o cabo-verdiano exige mais e mais mas também valoriza todo o percurso de Cabo Verde. Ele faz uma avaliação extremamente positiva, mas tem uma expectativa elevada em relação à dinâmica de desenvolvimento.
Imagem de Cabo Verde no mundo
A imagem externa de Cabo Verde tem sido uma das grandes conquistas do seu governo. Como continuar a valorizar essa presença de Cabo Verde no mundo?
Cabo Verde nasceu do encontro de civilizações. Houve aqui um intenso diálogo de culturas, povos e civilizações. Desse diálogo nasceu a primeira nação crioula no mundo. Isso dá-nos a dimensão cultural desse país.
Cabo Verde tem de continuar a ser um país de tolerância, de diálogo e de encontro de civilizações. Este elemento é fundamental. Temos de ser um país aberto ao mundo, um país de interculturalidade e de diálogo para fazermos jus a esta nação global cabo-verdiana com uma diáspora imensa. Dizem-me que os primeiros escravos que chegaram ao Haiti foram de Cabo Verde. Dizem-me também que os primeiros europeus que chegaram ao Brasil, ainda antes de Pedro Álvares Cabral, partiram daqui de Cabo Verde. De modo que temos de ter em conta estes elementos para construirmos o futuro de Cabo Verde. Um outro elemento importante é que Cabo Verde deve continuar a ser um país ponte entre a África, as Américas e a Europa.
Estribados sobre esses elementos podemos transformar a localização geoestratégica em fonte de vantagem competitiva para o desenvolvimento de Cabo Verde, e o facto de termos realizado aqui sobre proposta de Cabo Verde a primeira cimeira Brasil/CEDEAO dá-nos a dimensão do que podemos fazer em termos de encontro de culturas e civilizações, do diálogo entre povos e a possibilidade de continuarmos a ser um país ponte entre as Américas e a Europa.
A parceria com a UE é um outro instrumento importante de aproximação de Cabo Verde a espaços económicos e políticos, dinâmicos com os quais partilhamos os mesmos valores. Com os EUA, onde temos a maior diáspora cabo-verdiana no mundo, o Governo vem transformando esta vantagem em fontes de políticas públicas para reforçar a parceira estratégica entre EUA e Cabo Verde. O importante é aproveitarmos destas oportunidades para construirmos factores de competitividade e garantir a inserção competitiva de Cabo Verde na economia global. Cada vez mais é preciso competir com os outros e a competição exige a cultura de excelência, um aumento contínuo da produtividade e mais qualidade que os outros. É esse o espírito que o cabo-verdiano tem de cultivar: aproveitar as oportunidades, as dinâmicas que estão a ser criadas neste momento para darmos o salto, para realizarmos as rupturas, para provocarmos novas crenças, novos hábitos, novos comportamentos na economia cabo-verdiana.
Profundas mudanças na Justiça
A justiça parece merecer ainda uma resposta mais agressiva para que a sua credibilidade e celeridade correspondam às expectativas dos cabo-verdianos. Quais são os maiores desafios?
Na Justiça já se fez muito. Nós aprovamos o novo Código Penal, o novo Código Civil, o novo Código de Processo Cível e o novo Código do Notariado. Realizámos mudanças profundas a nível dos Registos e Notariado, nos registos prediais, e tornou-se possível a criação de Empresa no Dia. Também implementámos reformas profundas a nível das prisões e conseguimos a revisão da Constituição. Estamos a elaborar as novas leis sobre a organização judicial do país, os estatutos dos magistrados judiciais e do Ministério Público.
Aprovámos a lei orgânica do Supremo Tribunal de Justiça, reforçámos a Procuradoria-geral da República, criámos novos juízes, reforçámos as conservatórias e os registos um pouco por todo o país. Ainda no âmbito das profundas reformas no sector da justiça, aprovámos a nova lei de capitais, reforçámos a polícia judiciária e há um combate persistente ao narcotráfico e à criminalidade organizada conexa. Porém, num sector tão sensível como o da justiça não é possível obter, em pouco tempo, todos os ganhos. A morosidade ainda persiste, mas eu diria que neste momento há um reconhecimento de que há mais independência da justiça, há um reforço grande das condições materiais de trabalho e há mais instalações.
Agora é preciso continuar a mudar as crenças, os hábitos e os comportamentos dos operadores judiciários. Os magistrados cabo-verdianos estão a fazer um grande trabalho e estão conscientes dos desafios. O futuro depende fundamentalmente do trabalho dos magistrados.
Eu tenho que dizer que houve um grande avanço e ganhos importantes no sector da justiça. Os magistrados exercem o seu poder de julgar, de dizer o Direito de forma autónoma e independente e estão conscientes de que juntos temos de continuar a trabalhar para debelar o maior problema da justiça cabo-verdiana que é a questão da morosidade.
O desafio da Segurança
O que foi feito para reforçar a segurança e a autoridade do Estado, principalmente no sentido de suplantar a fragilidade da segurança urbana?
Também aqui há avanços. Veja o ganho que foi a criação da Polícia Nacional. Antes tínhamos a Polícia de Ordem Púbica, a Polícia Florestal, a Polícia Marítima e a Polícia Fiscal. Fizemos a integração dessas quatro polícias para racionalizar e garantir maior eficácia à acção da polícia em Cabo Verde. Demos mais meios, mais equipamentos e mais efectivos e hoje a polícia está em melhores condições de desempenhar o seu papel. Também reforçámos a Polícia Judiciária com mais efectivos, mais equipamentos e mais meios e hoje ela transformou-se numa instituição forte, credível e que tem dado um combate forte à grande criminalidade e ao narcotráfico.
Nesta primeira década do século XXI, há mais ameaças e uma complexidade das questões em torno da segurança, mas estamos a realizar trabalhos consistentes para que Cabo Verde continue a ser um país seguro. Sabemos que cada vez mais a questão da segurança põe-se como um grande desafio para o país. É um factor de competitividade o facto de termos esta paz social, de Cabo Verde continuar a ser um país seguro. Temos sobretudo de continuar a ser firmes no combate à delinquência juvenil e à pequena criminalidade mobilizando as polícias e a Polícia Militar para fazermos um trabalho articulado e coordenado no sentido de manter o país em segurança.
Ganhos para a Juventude
Quais são os principais ganhos para a Juventude que, afinal, se afigura como uma das suas bandeiras?
Fizemos muito para a juventude cabo-verdiana. Hoje praticamente metade dos jovens cabo-verdianos está no sistema educativo. Mais de 100 mil crianças e adolescentes recebem refeições quentes nas escolas, temos todo o programa de saúde escolar, o programa de apoio às famílias mais carenciadas, através do ICASE que foi transformado numa fundação para continuar a mobilizar os apoios da sociedade e prosseguir as políticas de solidariedade em relação às pessoas mais carenciadas da sociedade.
Hoje temos mais de 50 liceus, temos centros de formação profissional, escolas técnicas e o grande ganho dos jovens cabo-verdianos é a criação da Universidade Pública de Cabo Verde. Em 2001 não tínhamos nem uma universidade, hoje temos 10 universidades e instituições de ensino superior. Cerca de cinco mil jovens recebem bolsas de estudo aqui e no estrangeiro.
É claro que neste momento surgem novos desafios. Devemos ter um sistema integrado de bolsas de estudo sobretudo para apoiar mais as famílias carenciadas; devemos ter mecanismos mais adequados de financiamento do ensino superior e formação profissional para que as famílias possam ter acesso a créditos a um custo mais baixo; devemos ter a possibilidade de garantir aos jovens empresários o acesso ao crédito para o financiamento das suas iniciativas empresariais. Este é um caminho que nós estamos a percorrer.
Já se fez muito, mas emergiram novos desafios e estamos a trabalhar para dar respostas. A criação de um novo banco e de um fundo de garantia mútua são já elementos importantes nessa política para apoiar o empreededorismo juvenil. A criação dos centros da juventude, de programas como o emprego qualificado, soldado cidadão e o incentivo ao voluntariado juvenil são elementos importantes desta política e acho que os jovens estão a ganhar muito com essas medidas.
O que é que o seu Governo fez para a consolidação da Comunicação Social?
Há mais órgãos de comunicação social no país. O Estado desengajou-se da imprensa escrita dando mais espaços à sociedade para intervir neste domínio. Há três semanários, mais jornais digitais, mais rádios, mais televisões. Há mais liberdade de imprensa em Cabo Verde, todos os indicadores internacionais apontam nesse sentido. Eu acho que há um crescimento também profissional dos jornalistas e dos profissionais da comunicação social.
Temos de continuar a trabalhar porque considero que o essencial já foi feito; agora é aproveitar desses alicerces e desses pilares para continuarmos esta caminhada rumo à consolidação de um sector de uma comunicação social que seja um instrumento fundamental de consolidação do Estado de Direito Democrático e de formação de uma opinião pública autónoma forte e capaz de enfrentar os desafios deste processo de modernização de Cabo Verde.
O que é que justificaria votar em si pela terceira vez?
Continuar este processo de transformação e consolidação do nosso Estado de Direito Democrático. Nós temos que deixar que o rio corra normalmente. Não devemos tentar parar o curso das águas de qualquer rio. As pessoas olham para o futuro. É precisamente para enfrentar com sucesso os desafios do futuro é que iremos candidatar-nos de novo ao cargo de Primeiro-Ministro de Cabo Verde.