Para Manuel Veiga, quando esses valores e essas atitudes, individuais e colectivos são prenhes de sanidade, a nossa mente, forçosamente, tende também a ser sã. Daí, sublinhou, o adágio «mens sana in corpore sano». "Cremos não ser necessário repisar que a saúde mental e a saúde cultural precisam uma da outra. São quase que inseparáveis. E para que o indivíduo seja equilibrado, para que a sociedade seja harmoniosa e para que haja sanidade no ambiente humano e social há que investir na saúde mental e na saúde cultural". (Veja na íntegra o Discurso do Ministro)
DISCURSO DO MINISTRO DA CULTURA, DOUTOR MANUEL VEIGA, POR OCASIÃO DA ABERTURA DO FÓRUM SOBRE SAÚDE MENTAL NUM MUNODO EM TRANSFORMAÇÃO: O IMPACTO DA CULTURA E DA DIVERSIDADE
Saúde Mental Versus Saúde Cultural
Apraz-nos, em primeiro lugar, agradecer o convite que nos foi formulado pela Associação A Ponte para, no quadro da celebração do Dia Nacional da Saúde Mental, proceder à abertura do presente fórum sobre «Saúde Mental num Mundo em Transformação: O Impacto da Cultura e da Diversidade».
Nunca tivemos o ensejo de organizar o nosso pensamento sobre a saúde mental, embora ela seja uma componente essencial da nossa vida quotidiana, diríamos mesmo que ela é como o ar que respiramos.
Para discorrer sobre a inteligência, os contornos e as exigências da saúde mental, propomos fazer numa abordagem que abarque os seguintes pontos:
Ao receber o convite da associação A Ponte para abordar a problemática em apreço, ficámos a pensar qual terá sido a motivação do convite: o facto de sermos Ministro da Cultura ou o facto sermos um Homem de Cultura.
Preferimos estar aqui na qualidade de homem de cultura que, para além se ser mais abrangente, tem mais a ver com a nossa saúde mental, com a vivência e com a interpretação que fazemos dessa forma de ser e de estar na vida.
Antes de entrarmos no cerne da questão, gostaríamos de fazer-vos uma confidência: hoje, se a vida nos sorri, em grande parte, é por causa da nossa saúde mental, por causa da nossa vivência cultural. A cultura tem sido para nós uma das melhores vitaminas para o fortalecimento do nosso sistema imunológico. Por outras palavras, a nossa saúde mental e orgânica são devedoras da nossa saúde cultural. E isto é válido para todos os seres humanos. Daí que em qualquer comunidade, mas também em qualquer experiência individual ou colectiva, a saúde mental e a saúde cultural não só são interdependentes, mas também são responsáveis de todos os equilíbrios e desequilíbrios: o psicológico, o orgânico, o social, o individual, o colectivo, o político, o económico, o ambiental…
Falemos dos quatros pontos acima referidos. Comecemos com:
Antes de mais, qual é a inteligência do sintagma «Saúde Mental»?
À primeira vista, quando se fala de saúde mental, ocorre-nos logo pensar em distúrbios psicológicos, em doenças que requerem um tratamento psiquiátrico.
Ora, a saúde mental é muito mais do que isso. Ela é antes um estado de equilíbrio do que de desequilíbrio sanitário.
Segundo alguns entendidos, a saúde mental é o reflexo da forma como pensamos, como agimos, como interpretamos, como sentimos, como nos relacionamos com o nosso ego, com as outras pessoas e com o mundo que nos rodeia.
Há quem vê uma relação estreita entre a mente e corpo, a ponto de considerar que o bom humor pode curar doenças e que o riso pode afastar tanto os males físicos como os psicológicos.
Essas afirmações devem ser tomadas como uma predisposição e não como verdades absolutas. O que quer que seja, há que reconhecer que a saúde do corpo é devedora, em grande parte, da saúde da alma, da saúde da mente, da saúde das nossas emoções.
Porém, a saúde da mente, não é apenas uma dávida. Ela é sobretudo uma construção a partir dos valores e atitudes que defendemos, que praticamos, que recebemos, que comunicamos, que consumimos, consciente ou inconsciente, livre ou constrangidamente.
Quando esses valores e atitudes são positivos e indutores de equilíbrio físico, orgânico ou psicológico, os índices de saúde mental aumentam; pelo contrário, esses índices diminuem quando os valores e as altitudes ambientais são negativos, agressivos ou indutores de desequilíbrios.
Os valores e atitudes do sujeito, como também os valores e atitudes do meio onde está inserido, insuflam veneno ou vitamina ao nosso estado sanitário conforme a natureza negativa ou positiva dos mesmos.
Assim, a profilaxia como a terapia, tanto do médico como do paciente, sem descurarem o papel da medicina, devem tomar em devida conta as influências positivas ou negativas dos valores e das atitudes ambientais.
A responsabilidade da saúde mental é do sujeito, mas também é da sociedade, é do meio. E quando esta saúde mental periclita ou soçobra, o sujeito tem a sua quota-parte de responsabilidades mas também o seu meio social e cultural tem a sua parte de cumplicidade.
Por tudo isto, tanto na profilaxia como na terapia da saúde mental, há que dar especial atenção aos valores e atitudes prevalecentes, encorajando os que são construtores do equilíbrio mental, combatendo os que são perversos para esse mesmo equilíbrio.
O homem é um ser de relação. De relação com ele próprio, de relação com os outros, de relação com o mundo e de relação com o transcendente.
E para o estabelecimento de todos essas relações, o instrumento utilizado é a linguagem.
Esta pode ser articulada, escrita, gestual, pictórica, simbólica, virtual, etc.
Toda essa linguagem é diversa, é múltipla, é complexa, é contextual, é individual, é social, é temporal, é atemporal, é material, é imaterial.
Ora, como comunicar com propriedade num mosaico tão diverso de significados e de significantes, de signos e de sentidos, de senso e de contra-senso?
A comunicação, em certo sentido, dá-nos o rosto da saúde mental, mas também pode influenciar, positiva ou negativamente, esta mesma saúde.
A questão fundamental é saber como comunicar na profilaxia, mas também na terapia. Como se sabe, a comunicação pode ser oxigénio, mas também pode ser anídrico carbónico.
E hoje, no mundo global, mais do que nunca, a responsabilidade da linguagem apropriada e da comunicação mesurada é um desafio de todos: pais, educadores, políticos, comunicadores, jornalistas, sistema de saúde e de educação, pacientes, alunos, cidadãos, profissionais de todos os ramos, comunidade, associações, grupos de interesse, etc.
Para que a sociedade seja sã, é preciso que o indivíduo, o sistema de valores, a comunicação, os hábitos e costumes sejam sãos também.
O equilíbrio da saúde mental é corolário do equilíbrio dos valores, do equilíbrio da comunicação e da forma como consumimos, reproduzimos e transmitimos esses mesmos valores.
Temos que saber comunicar se queremos ter uma sociedade com uma saúde mental equilibrada. Para tal, temos que ter a humildade para aprender e as escolas são muitas: a família, a comunidade, a tradição, a cultura, a transculturalidade, os bancos do ensino, a rua, o mercado, o trabalho, as igrejas, o sistema de saúde, a aldeia, o campo, a cidade, a emigração, a imigração, a prisão, a deportação, a nação, a transnacionalidade, a loucura, os desvios comportamentais, a sanidade física e mental.
Comunicar na diversidade é antes de mais um acto de interiorização e de compreensão dessa diversidade, um acto de conhecimento da semente adequada, do campo apropriado e do momento exacto para a faina profilática ou terapêutica.
Comunicar na diversidade, com tolerância, com propriedade, com eficácia e eficiência não é fácil. Por isso, a aprendizagem deve ser contínua, persistente e diversificada.
Estaremos nós disponíveis para essa aprendizagem? Se sim, a saúde mental da nossa comunidade será cada vez mais equilibrada; se não, ela poderá enfrentar graves patologias que não deixarão incólume nem o indivíduo, nem a comunidade, nem a sociedade
A responsabilidade da saúde ou da patologia mentais é social, é de todos e de cada um de nós.
Qual é o exame de consciência que cada um de nós faz? Qual é o exame de consciência que a nossa comunidade e a nossa sociedade fazem? Estamos certos de que algumas respostas vão ser dadas no presente Fórum.
3. Saúde Mental e Agressão Ambiental:
Constitui ou não agressão ambiental, para uma criança, o facto de ser filho ou filha de pais alcoólicos, tóxico-dependentes, separados, violentos, irascíveis, portadores de doenças graves transmissíveis? Constitui ou não agressão ambiental o facto de ser filho de pais ignorantes, miseráveis, prisioneiros, excluídos? Constitui ou não agressão ambiental viver em situação de dominação política, económica, social e cultural? Constitui ou não agressão ambiental viver em terras de emigração forçada, ser obrigado a comunicar, inclusivamente nos tribunais e nas sessões de terapia médica, numa língua que não dominamos? Constitui ou não violência ambiental, particularmente em Africa, viver lado a lado com focos de riqueza podre e arrogante, com a miséria massiva e humilhante, com a exploração alheia e vergonhosa de recursos que são nossos, mas que não nos pertencem? Constitui ou não agressão ambiental a intolerância geracional, histórica, política, ética e religiosa? Constitui ou não agressão ambiental quando temos medo ou nos sentimos inseguros, quando vivemos em situação de insalubridade, quando habitamos nos «ghetos» ou nos «bidonvilles», quando somos desempregados ou sub empregados, quando temos limitações ou curto-circuito na comunicação?
As respostas são todas evidentes, por isso é uma tautologia registá-las. Preferimos incitar a todos na busca de solução, já que a responsabilidade é colectiva, é individual.
Creio que em Cabo Verde temos dado passos consideráveis na luta contra os diversos tipos de agressão do ambiente. Com efeito, lutámos contra a escravatura e vencemos. Hoje, o Pelourinho da Cidade Velha é apenas um símbolo de um passado de triste memória; lutámos contra o regime colonial e a bandeira foi içada na Várzea da Companhia, ficando o Campo de Concentração do Tarrafal transformado no Museu da Resistência; lutámos para a construção e desenvolvimento do Pais e hoje Cabo Verde é membro das Nações Unidas, está em vias de entrar no clube dos Países de Desenvolvimento Médio, vivemos num Estado de Direito com uma economia em franco desenvolvimento, com índices de desenvolvimento humano invejáveis em África, com o mercado económico e turístico atractivo, com o sistema de Educação e de Saúde bem implantado, com uma cultura de inclusão e de integração cada vez mais reforçada.
Mas, temos que o reconhecer, focos importantes de agressão ambiental persistem em alguma discriminação sexual, laboral e linguística; em vários casos de violência doméstica; em comportamentos sociais inadequados para com os doentes mentais; nas manchas de pobreza e de desemprego ainda existentes; em alguns desequilíbrios entre o campo e a cidade; em atendimento deficiente de tóxico-dependentes, alcoólatras portadores de doenças graves, deportados, prostitutas, crianças de rua e na rua; em alguns casos de exclusão cultural por analfabetismo, por ignorância ou por falta de meios.
Porém, a questão fundamental não é apenas a tomada de consciência do problema.
Impõe-se encontrar a solução. E esta só é possível quando houver um verdadeiro casamento entre a saúde da mente, a saúde ética, a leveza da estética, a arte de viver em paz como indivíduo, como membro de uma colectividade ou de uma sociedade. E isto leva-nos a falar do último ponto da nossa exposição que é:
A cultura, muitas vezes, é entendida e interpretada com ligeireza e de forma redutora. Para algumas pessoas, ela se resume às manifestações de arte, às tradições e a alguns aspectos da história que caracterizam e que identificam um povo. Ora, tudo isto é cultura, mas a cultura é muito mais do que isto.
Ela é tão vasta, é tão diversificada que dificilmente caberia por entre as costuras de uma definição. Alguns antropólogos consideram-na como um conjunto complexo que inclui a sabedoria, as crenças, as artes, as leis, os sistemas de valores e de organização, os costumes, as atitudes, as formas e os conteúdos de vida humana, de relacionamento com os outros, com a natureza, consigo próprio e com o transcendente.
A cultura é, efectivamente, vasta, mas podemos resumi-la numa frase: ela é o rosto do nosso humanismo ético, estético, existencial, filosófico, ambiental e criativo. De facto, ela confunde-se com o humanismo. Com o humanismo na procura e na resposta; com o humanismo na afirmação e na preservação; com o humanismo na criação e na inovação; com o humanismo na comunicação e na prevenção; com o humanismo no consumo, mas também na partilha; com o humanismo na concepção, mas também na interpretação.
Sem a cultura, a história e as tradições seriam uma miragem; a educação não teria pés para andar. Sem a cultura os médicos fechariam as suas clínicas, as enfermeiras ficariam desempregadas e os hospitais transformar-se-iam em cemitérios. Sem a cultura, os políticos perderiam sempre as eleições, os agricultores morreriam de fome, os investidores cairiam na falência. Sem a cultura, a sociedade seria uma selva, as igrejas desapareciam, as galerias de arte e de história seriam inexistentes. Sem a cultura, o homem seria simples animal.
Tudo isto para dizer que somos homens porque temos e criamos cultura.
E é a cultura, na vertente de valores e de atitudes, que mais influencia a nossa mente. Quando esses valores e essas atitudes, individuais e colectivos são prenhes de sanidade, a nossa mente, forçosamente, tende também a ser sã. Daí o adágio «mens sana in corpore sano». Podemos também dizer que quando o corpo regurgita de sanidade física e ambiental, a mente, por princípio, tem saúde, tem vitalidade, vive, partilha e reproduz essa saúde e essa vitalidade.
Cremos não ser necessário repisar que a saúde mental e a saúde cultural precisam uma da outra. São quase que inseparáveis. E para que o indivíduo seja equilibrado, para que a sociedade seja harmoniosa e para que haja sanidade no ambiente humano e social há que investir na saúde mental e na saúde cultural.
Estaremos nós disponíveis e preparados para fazer este investimento? Que cada um responda no seu foro íntimo. Amanhã os nossos filhos, os nossos netos dirão se vencemos ou se falhámos. Quanto a nós, fazemos votos para que a sociedade caboverdiana vença e vença sempre; para que a sociedade africana vença e vença sempre; para que as nações do mundo inteiro vençam e vençam sempre.
Porém, para todas essas vitórias há uma condição: é preciso insuflar oxigénio e vitamina no corpo e na alma da cultura, no sangue e nas células da mente, nos tecidos e nos interstícios da diversidade cultural.
Muito obrigado
Praia, 10 de Outubro de 2007
Manuel Veiga